É tempo de misericórdia, não de presunção!
Colocado à prova pelos fariseus e mestres da Lei, Nosso Senhor mostra, ao mesmo tempo, a sua mansidão e a sua justiça: de modo algum, Ele aprova o pecado, mas, ao mesmo tempo, faz de tudo para resgatar o pecador da miséria na qual se encontra.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
(Jo 8, 1-11)
Naquele tempo, Jesus foi para o monte das Oliveiras. De madrugada, voltou de novo ao Templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los. Entretanto, os mestres da Lei e os fariseus trouxeram uma mulher surpreendida em adultério. Colocando-a no meio deles, disseram a Jesus: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?” Perguntavam isso para experimentar Jesus e para terem motivo de o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever com o dedo no chão. Como persistissem em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: “Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. E tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão. E eles, ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos; e Jesus ficou sozinho, com a mulher que estava lá, no meio do povo. Então Jesus se levantou e disse: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” Ela respondeu: “Ninguém, Senhor”. Então Jesus lhe disse: “Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais”.
Celebramos o 5.º Domingo da Quaresma, também conhecido na liturgia antiga como Domingo da Paixão. Embora ainda estejamos na Quaresma, a liturgia torna-se cada vez mais sóbria, pois nos aproximamos da reflexão sobre a Paixão de Cristo. A partir de segunda-feira, os sacerdotes começam a usar o Prefácio da Paixão do Senhor, marcando o início de um tempo mais introspectivo e silencioso. Nesse contexto, há também a tradição de cobrir as imagens e crucifixos com um véu, como um “jejum dos olhos”, para nos dispormos ao recolhimento interior e nos prepararmos para um exame de consciência.
O Evangelho deste domingo, o da adúltera perdoada por Jesus (Jo 8, 1-11), também provoca em nós um exame de consciência. Nessa narrativa, vemos uma mulher pega em flagrante adultério sendo arrastada até Jesus. Para nossa reflexão, além das minhas considerações pessoais, vamos nos guiar pelos ensinamentos de dois grandes mestres espirituais: Santo Agostinho, com a homilia 33 — ou “Tractatus n. 33” — do seu Comentário ao Evangelho de São João; e Santo Tomás de Aquino, que também se debruçou sobre o capítulo 8.º deste evangelista.
Os santos nos mostram um detalhe significativo neste Evangelho: Nosso Senhor, que ensinava no Templo como mestre, vai ao Horto das Oliveiras, local onde se produz o óleo da unção. Santo Tomás destaca essa ligação, afirmando que Jesus sobe ao monte do óleo do crisma, lembrando-nos de que somos ungidos no sacramento da Crisma, e essa unção fortalece-nos como soldados de Cristo, chamados a combater o pecado e o demônio.
Nesse sentido, é essencial compreendermos em nossa vida espiritual que a maior arma contra o demônio, que busca nos seduzir ao pecado, é a certeza da misericórdia divina. Essa unção de Deus nos acolhe e nos perdoa, como nos mostra o Evangelho de hoje de forma bem concreta.
Ao amanhecer, Jesus desce do Monte das Oliveiras e volta ao Templo a fim de ensinar como Mestre da verdade. É nesse momento que os fariseus tentam pegá-lo no erro, preparando-lhe uma armadilha. No Evangelho de São João, Jesus frequentemente parece estar sendo julgado; tendo de apresentar testemunhas e sinais da sua retidão. Entretanto, aqui a situação inverte-se: Cristo não está em posição de defesa, mas de autoridade. Sentado, Ele ensina como mestre e, ao mesmo tempo, coloca-se como juiz.
Os fariseus e mestres da Lei armam uma verdadeira arapuca para Jesus, levando-lhe uma mulher pega em adultério e perguntando se ela deve ser apedrejada. A bem da verdade, o alvo deles não é a mulher, mas o próprio Jesus. Querem transformá-lo de juiz em réu, forçando-o a dar uma sentença que o condene. No entanto, sendo a Sabedoria Encarnada, Jesus não cai na armadilha; pelo contrário, usa contra eles a própria cilada que lhe prepararam.
A mulher, pega em flagrante adultério, é arrastada aos pés de Nosso Senhor em meio ao tumulto. Os fariseus lançam-na diante d’Ele e fazem a pergunta decisiva: “Moisés manda apedrejar este tipo de mulher. E tu, o que dizes?”. Claramente, a intenção desses homens não é buscar justiça, senão fazer Jesus cair em uma cilada — eles pretendem usar contra Nosso Senhor sua própria mansidão. Já estão fartos das suas respostas sábias e serenas, sempre escapa das armadilhas. Dessa forma, convictos de que Jesus não ordenaria a execução da mulher, planejam condená-lo quando Ele finalmente dissesse que a mulher não deveria ser apedrejada — assim, os fariseus teriam a chance de acusar Jesus de desrespeitar a Lei de Moisés.
Entretanto, quem caiu na armadilha foram os próprios fariseus que a armaram. Com um gesto inesperado, Jesus abaixa-se e começa a escrever no chão, criando um silêncio que acalma a confusão. Esse gesto tem um significado histórico e outro alegórico. Historicamente, Jesus estava esperando a agitação cessar, deixando todos perplexos. Alegoricamente, lembra que, no Antigo Testamento, Deus escreveu a Lei em tábuas de pedra com seu próprio dedo. Agora, com a Encarnação do Verbo, Ele escreve uma nova Lei, não mais em pedra, mas na areia, simbolizando a nova aliança e a misericórdia que superam a rigidez da antiga Lei.
O gesto de Jesus, ao escrever na areia, tem diferentes interpretações. Santo Tomás ensina que, no Antigo Testamento, a Lei foi gravada em pedra para simbolizar a dureza do coração do povo e o rigor da antiga aliança. Já na areia, Jesus expressa a suavidade e a docilidade da nova Lei. Santo Agostinho, por outro lado, vê nesse gesto a ideia de semeadura: enquanto a antiga Lei era rígida como a pedra, a nova é plantada na terra para dar frutos de misericórdia e de amor. As duas interpretações ressaltam que Cristo veio buscar frutos de amor e misericórdia entre nós.
Assim, os fariseus e mestres da Lei insistem por uma resposta, e Jesus finalmente pronuncia sua sentença, mas de forma condicional: “Aquele que não tem pecado, atire a primeira pedra”. Com isso, Ele inverte a situação, transformando os acusadores em réus e levando-os a um exame de consciência. Santo Agostinho e Santo Tomás, como também os Santos Padres, destacam que esses líderes não eram isentos de pecado. Santo Tomás, principalmente, enfatiza que a Lei deve ser cumprida, mas não por juízes prevaricadores, isto é, por juízes corruptos, como aqueles fariseus, que com grande incoerência persistiam em seu pecado.
Os fariseus que levaram a mulher até Jesus, naquele exato momento, estavam em estado de pecado. Isso porque, ao usar a Lei para armar uma cilada contra Jesus, condenavam não apenas a mulher, mas também a si mesmos. Mas com sua resposta, Cristo os desmascara, revelando a hipocrisia deles: ao buscar condenar um inocente, tornam-se igualmente réus. Assim, Ele os coloca no mesmo nível da mulher, deixando claro que, se ela merecia ser apedrejada, eles também estariam sob o mesmo julgamento.
Isso é essencial para a nossa vida espiritual. Muitos falam de misericórdia, mas esquecem como vivê-la corretamente, segundo Nosso Senhor. Ademais, aqueles que clamam por justiça e vingança divina esquecem que também são pecadores e, portanto, os primeiros na fila do julgamento. Devemos, por isso, abandonar esse espírito de rigor excessivo, como o dos Apóstolos João e Tiago, que pediram a Jesus para destruir com um raio aqueles que rejeitaram o Evangelho. Se desejamos que Deus puna os pecadores, devemos lembrar que somos os primeiros da fila e também estamos sob julgamento. Antes de pedir justiça, é preciso reconhecer nossa própria necessidade de misericórdia.
À vista disso, devemos clamar por misericórdia, pedir perdão pelos nossos pecados, fazer penitência e arrepender-nos. Desse modo, ao nos encontrarmos com alguém pecador ou injusto, em vez de pedir vingança, vejamos como uma oportunidade para praticar a paciência e a misericórdia — assim como fomos tratados por Cristo. Isso é essencial sobretudo nas famílias. Ao praticarmos essa misericórdia, consolamos o Coração de Jesus, em vez de ofendê-lo como fizeram os fariseus. “Misericórdia eu quero, e não sacrifício”.
Dando sequência ao Evangelho, vemos que aqueles homens, então, começaram a sair, um após o outro — a começar pelos mais velhos. A interpretação disso pode ser dupla: ou porque os mais velhos tinham mais pecados, ou porque, mais sábios, envergonharam-se primeiro, reconhecendo seus grandes erros.
Santo Agostinho, em uma passagem memorável, diz: “Relicti sunt duo: misera et misericordia”, ou seja, ficaram ali apenas dois: a miséria e a misericórdia, Jesus e a mulher. Assim acontece um milagre maior que a Criação do mundo: perdão do pecador.
Santo Tomás, na Suma Teológica, na questão 113, artigo 9, da primeira seção da segunda parte, afirma, citando Santo Agostinho, que a justificação do ímpio é a maior obra de Deus, maior inclusive que a criação do Céu e da terra, porque a salvação é eterna, enquanto o mundo e até os anjos passarão. A misericórdia e o amor usados para perdoar o ímpio são mais profundos do que os usados para criar o universo e os anjos.
E então, ao dirigir seu olhar misericordioso àquela mulher, Jesus diz: “Nem eu te condeno, vá e não peques mais”. Vemos, portanto, que Jesus não é conivente com o pecado. Ele não diz à mulher para continuar pecando, mas a adverte: “Não peques mais”, dando-lhe a chance de mudar. Não sejamos presunçosos. Santo Agostinho lembra que, embora possamos contar com a misericórdia de Deus, não sabemos quanto tempo de vida nós dispomos. Deus sempre nos concede o perdão, mas não nos garante uma vida longa nem o tempo que imaginamos para nos arrepender.
Eis o tempo da conversão, eis o dia da salvação. É agora o momento de nos convertermos de verdade e sermos para Deus os filhos que Ele espera de nós. Não desprezemos a maravilhosa obra de Deus que perdoa nossos pecados. Não sejamos presunçosos, continuando a ofender o Coração de Nosso Senhor. Vamos nos converter, corrigir nossos hábitos, fazer penitência e viver o Evangelho do amor, não apenas o amor que Deus nos dá, mas também o amor que devemos devolver a Ele, mudando de vida.
Via: padrepauloricardo.org