Domingo XXIII do Tempo Comum

Ano B

Abre as mãos, a cabeça e o coração

De olhar brilhante, caminhava saltitando ao lado do pai que o levava pela mão. Tinha cinco, seis anos? Talvez. Parecia feliz, sentia-se grande, forte e poderoso, cheio de si, porque sentia a segurança da mão que o apertava com amor.

De repente, larga a mão do pai e corre para a prateleira dos brinquedos e cheio de entusiasmo e segurando uma caixa, volta-se para o pai saltando ainda com mais alegria e dizendo “este pai, quero este”.

O pai diz-lhe: “Não! Hoje não viemos para isso. Vamos comprar o que precisamos e outro dia compramos um brinquedo que tu queiras”. A resposta não agradou, bateu o pé, atirou com a caixa e sentou-se no chão a choramingar. O pai dobrou-se sobre ele e tentou explicar-lhe… mas ele, com as mãos tapou os ouvidos. O pai falava, falava, mas ele não conseguia ouvir. Não era surdo, não eram as mãos que o impediam de ouvir, era o coração que estava fechado na caixa que acabara de atirar com raiva ao chão.

LEITURA I Is 35, 4-7a

Dizei aos corações perturbados: «Tende coragem, não temais. Aí está o vosso Deus; vem para fazer justiça e dar a recompensa; Ele próprio vem salvar-nos». Então se abrirão os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos. Então o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria. As águas brotarão no deserto e as torrentes na aridez da planície; a terra seca transformar-se-á em lago e a terra árida em nascentes de água.

A viver numa época difícil e propícia ao desânimo, o profeta Isaías procura as palavras mais indicadas para anunciar a esperança, pois Deus vai restaurar o seu povo. O profeta fala de um tempo que se aproxima em que Deus vai curar o homem de todos os males, vai transformar o deserto numa nascente de água e a tristeza dará lugar à alegria.

Salmo Responsorial Sl 145 (146), 7.8-9a.9bc-10 (R. 1)
O salmo 145, nos versículos deste domingo, salienta todas as ações de Deus em favor dos homens, sobretudo daqueles que se sentem esmagados pelas circunstâncias da vida. O salmista conhece o coração de Deus e sabe que só no Senhor pode pôr a sua confiança. A partir da sua experiência ensina a confiar nele, todos os que passam fome, os que são injustiçados, os prisioneiros, os cegos e os abatidos, os peregrinos, órfãos e viúvas, os pecadores e até os justos. Enfim, todos os homens têm razões para confiar no Senhor.

LEITURA II Tg 2, 1-5

Irmãos: A fé em Nosso Senhor Jesus Cristo não deve admitir aceção de pessoas. Pode acontecer que na vossa assembleia entre um homem bem vestido e com anéis de ouro e entre também um pobre e mal vestido; talvez olheis para o homem bem vestido e lhe digais: «Tu, senta-te aqui em bom lugar», e ao pobre: «Tu, fica aí de pé», ou então: «Senta-te aí, abaixo do estrado dos meus pés». Não estareis a estabelecer distinções entre vós e a tornar-vos juízes com maus critérios? Escutai, meus caríssimos irmãos: Não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?

Deus é o modelo da comunidade cristã. Deus não faz distinção de pessoas e escolhe o que é pobre para manifestar nele a verdadeira riqueza, a que brota da fé. Fazer distinção de pessoas, preferir os ricos aos pobres, à espera de benefícios, é agir contra a fé em Cristo.

EVANGELHO Mc 7, 31-37

Naquele tempo, Jesus deixou de novo a região de Tiro e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia, atravessando o território da Decápole. Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele. Jesus, afastando-Se com ele da multidão, meteu-lhe os dedos nos ouvidos e com saliva tocou-lhe a língua. Depois, erguendo os olhos ao Céu, suspirou e disse-lhe: «Efatá», que quer dizer «Abre-te». Imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua e começou a falar corretamente. Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém. Mas, quanto mais lho recomendava, tanto mais intensamente eles o apregoavam. Cheios de assombro, diziam: «Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

Jesus manifesta continuamente que a sua vida é toda ela em favor dos homens, particularmente dos que revelam maior fragilidade. A surdez é um impedimento para acolher a palavra e a mudez uma incapacidade para louvar o Senhor. Libertando o homem destas incapacidades, Jesus restitui-lhe a possibilidade abrir a sua vida a Deus e aos outros.

Reflexão da Palavra

Servindo-se de um nome simbólico, Edom, o profeta Isaías anuncia a destruição de Babilónia, porque, oprimindo o povo do Senhor, merece um castigo divino. Este juízo, descrito no capítulo 34 faz com o capítulo 35, o da libertação, aquilo a que se pode chamar um pequeno apocalipse.

Depois de vaticinar a destruição de todas as nações, o julgamento transforma-se numa libertação, um sinal de bênção, para o povo do Senhor que se encontra humilhado longe da sua pátria. A cena está marcada pela alegria, o júbilo e a exultação. Deus, na sua ira, desce para transformar a situação em que se encontra o seu povo. Com a chegada do Senhor vai brotar água e vão crescer flores no meio do deserto, a tristeza vai transformar-se em alegria, “abrirão os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos”, “o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria”. O povo pode ver a glória do Senhor, porque ele “vem para fazer justiça e dar a recompensa; Ele próprio vem salvar-nos”. A chegada do Senhor é libertação para o seu povo que regressa a casa, a Jerusalém, por “uma estrada e um caminho, que se chamará Via sagrada”, por onde “apenas passarão os remidos”. Esta notícia tem que chegar a todos, sobretudo aos “corações perturbados”.

Juntamento com os salmos seguintes, o salmo 145 forma um grupo de salmos chamados “Hallel”, que se rezavam nas festas, particularmente na noite de Páscoa. Este salmo está composto em três partes, sendo a primeira (v. 1-2) uma introdução que é também uma declaração de compromisso do salmista a louvar o Senhor. A segunda parte (v. 3-4) apresenta a condição humana com as suas limitações, “não podem salvar”, “deixam de respirar”, “regressam ao pó da terra”, “não acabam os seus projetos”. A terceira parte (v. 5-10) apresenta Deus na sua ação, faz justiça, dá pão, liberta, ilumina, levanta, ama, protege, ampara, reina. Os versículos usados na liturgia deste domingo são uma ampliação da ação de Deus em favor do seu povo anunciada por Isaías na primeira leitura.

Tiago continua a ideia deixada no final da leitura do domingo passado em que afirmava que a “religião pura e sem mancha” consiste em assistir os mais pobres e desprotegidos. No início do capítulo 2 Tiago estabelece a relação entre a fé e a atitude para com os pobres. Para expressar melhor a sua ideia conta uma espécie de parábola, que poderá ter origem em alguma situação concreta passada na comunidade e que serve de ensinamento. A preferência pelos ricos e pelos benefícios que se podem tirar dessa preferência não é conciliável com a fé em Cristo que não faz distinção de pessoas. Esta atitude, não só marginaliza como humilha os pobres e manifesta rejeição por aqueles que Deus escolheu “para serem ricos na fé e herdeiros do reino”. A fé cristã não permite colocar a segurança nas riquezas, nem permite o favoritismo do rico, nem o julgamento do pobre pela sua aparência, mas exige acolher a todos sem distinção. A única riqueza admissível a um cristão é a que brota da fé.

A página do evangelho de Marcos está em ligação estreita com a primeira leitura e com o salmo, de modo que Jesus aparece como aquele que dá cumprimento à promessa de libertação feita por Deus ao seu povo.

Jesus abandona a região pagã de Tiro e Sidónia, através da Decápole e chega ao mar da Galileia. Se os pagãos são considerados pessoas incapazes de acolher a palavra de Deus, este homem, ao que parece, judeu, também não consegue acolher a palavra de Deus, porque é surdo e não pode louvar o Senhor porque fala com dificuldade. É um homem fechado em si mesmo, incapaz de comunicar, vive para dentro e não para os outros. De acordo com a mentalidade do tempo, esta dificuldade é uma manifestação do Espírito maligno que habita nele. Como em outras situações, retirando-lhe o espírito impuro, o homem pode ouvir e falar perfeitamente. Por essa razão o levam a Jesus na expetativa que lhe imponha as mãos.

No encontro com Jesus sucedem-se vários momentos significativos. Primeiro, Jesus retira o homem do meio da multidão para estar a sós com ele, “afastando-Se com ele da multidão”. Por vezes quem não nos deixa ouvir e falar é a multidão. Depois mete os próprios dedos nos ouvidos do homem, “meteu-lhe os dedos nos ouvidos”, isto é, implica-se todo na ação, inclinando-se para ele e metendo-lhe os dedos nas orelhas. Coloca saliva nos próprios dedos e toca-lhe a língua, “com saliva tocou-lhe a língua”. A saliva, para além do sentido curativo que tinha na antiguidade, provém da boca de Jesus, do seu interior, do íntimo, do lugar do alento, do sopro, significa comunicação da própria vida, do Espírito Santo que está nele e pode vence o espírito impuro que aprisiona o homem. Sequentemente Jesus “erguendo os olhos ao Céu, suspirou” o que dá ainda mais força aos gestos anteriores no sentido de que, tudo o que se vai passar tem a sua origem em Deus que é princípio de vida. Finalmente, Jesus fala, como Deus fez no ato criador, “disse Deus… e assim aconteceu” (Gn 1,6). Jesus diz “abre-te” e “imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua e começou a falar corretamente”.

O que se operou no homem não foi simplesmente uma cura física. O toque físico dos ouvidos e da língua provoca no homem uma capacidade para acolher a palavra de Deus que provoca a fé em Jesus. Pela ação de Jesus, aquele que estava fechado abriu-se e pode estabelecer relação com Deus e com os outros.

A multidão, admirada, reconhece que aquela ação é tão boa como a ação criadora de Deus. De facto, “Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gn 1,31). A multidão também reconhece que “tudo o que [Jesus] faz é admirável“, por isso, “cheios de assombro” não acatam a admoestação que lhes faz e “mais intensamente o apregoavam”.

Meditação da Palavra

A preocupação de Jesus centra-se no homem, na pessoa concreta com as suas limitações e incapacidades. Jesus vem da região onde os homens, pagãos, têm dificuldade em acolher a palavra de Deus e converter o coração ao evangelho. Ao chegar à Galileia depara-se com um homem que, embora não seja pagão, também não está aberto à palavra, não comunica para lá de si mesmo, vive fechado no seu mundo onde não há lugar para os outros e para Deus.

Este homem é símbolo do povo da primeira leitura, desmoralizado, caído no desânimo, de coração perturbado, incapaz de acolher a boa notícia do profeta, que lhe anuncia a chegada do Senhor que “vem salvar-nos”. É símbolo de todo aquele que, fechado em si e nas suas circunstâncias acredita já não haver solução para si. Que se pode dizer àqueles que vivem com o coração apertado pela opressão, pelo sofrimento, pelos esmagamentos da vida? Palavra como “tem coragem, não temas”, “aí está o teu Deus… ele vem salar”? Tudo o que se possa dizer soa a paliativo e não a verdadeira cura. O surdo do evangelho são todos aqueles que, mesmo podendo ouvir fisicamente, não estão disponíveis para acolher a boa noticia da salvação anunciada pelos profetas e, definitivamente, por Jesus.

A comunidade cristã pode acolher em si homens e mulheres que, dizendo-se cristãos, não se deixam libertar de ideias feitas, preconceitos, hábitos e costumes antigos, critérios de avaliação e análise, julgamentos e condenações, isolamentos e individualismos, preferências e radicalismos. Também pode acolher homens e mulheres que têm em Jesus uma fé feita de ideias e não de adesão verdadeira ao seu projeto de renovação interior. E pode ainda acolher aqueles que procuram em Jesus a resposta milagrosa a um problema de resolução urgente. A comunidade cristã pode estar cheia de gente que não ouve e que, por isso, também sofre de incapacidade para falar.

O evangelho diz que, muitas vezes, as multidões procuravam Jesus na expetativa de um milagre, de uma cura extraordinária. No entanto, o evangelho esforça-se também por apresentar Jesus como o Messias, alguém que atua para além do milagre, porque a sua ação não visa, apenas, a cura física, mas a abertura do homem para o mistério salvífico de Deus.

É o que acontece com este homem surdo e mudo. Fechado em si, não pode encontrar-se com os outros e com Deus. O toque de Jesus no corpo físico, transmite-lhe uma vida nova no corpo espiritual de modo que começa nele uma vida nova. É como o profeta Isaías que vendo, o que mais ninguém vê, desperta no povo o ânimo de uma vida nova que vem de Deus e não deles. Uma vida nova que, por eles nunca acontecerá porque estão demasiado caídos, mas que Deus, e só Deus, pode operar neles, como só Jesus pode abrir naquele homem e em cada homem a possibilidade de uma nova vida.

É esta a experiência dos cristãos após a ressurreição de Jesus. Ao anunciarem o Kerigma, Jesus morto e ressuscitado, percebem a dificuldade que muitos têm em aderirem à fé por se encontrarem fechados em si mesmos e surdos para a palavra que os pode abrir e fazer viver a vida nova de Cristo ressuscitado. As suas tradições, os seus costumes, as experiências religiosas anteriores, a família, entre outros motivos, são entraves que muitos não querem vencer para aderir a Jesus, ficando, muitas vezes, numa admiração pela sua maneira de pensar e de viver.

A fé em Jesus não é apenas a adesão intelectual à sua história e à sua pessoa, como um homem extraordinário que foi, mas a adesão a uma nova forma de vida, assumindo as opções de Jesus, que não fazia acessão de pessoas, como alerta Tiago na sua carta. De facto, Tiago recorda que, mesmo os que se dizem cristãos e participam na vida comunitária, podem continuar fechados dentro de si próprios para o verdadeiro evangelho, para a verdadeira libertação, quando não vencem em si mesmos as atitudes pagãs de considerar os homens pelo exterior e procuram algum benefício com a bajulação dos ricos, provocando, desta forma, o desprezo pelos pobres que são os escolhidos por Deus para confundir os poderosos.

A libertação que o Senhor oferece é interior e não exterior, a riqueza que ele nos dá brota da fé e não do bolso dos ricos e a sua proposta de vida não é instalação, mas o incómodo de fazer como ele, praticar a justiça, dar de comer, libertar, iluminar, levantar, amar, proteger, amparar e cuidar daqueles que, por serem os preferidos de Deus, são lugar de libertação para os que lhes dedicam a vida.

Rezar a Palavra

Abre-me, Senhor, o coração para amar aqueles que tu amas, os teus preferidos e faz de mim um instrumento para a libertação de todos os que estão caídos, oprimidos, esmagados. Faz de mim sinal de esperança para os desanimados e de fortaleza para os que não conseguem levantar-se. Abre a minha boca para proclamar o teu evangelho e os meus ouvidos para escutar o clamor dos pobres. Abre a minha vida ao mistério da cruz para me tornar Via Sagrada através da qual entram no reino os humilhados e perseguidos, os desprezados e esquecidos.

Compromisso semanal

Que ouvir a voz de Jesus que me diz “Efatá”.

Referência: aliturgia.com

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